Saturday 18 March 2017

O DERRADEIRO LUSISTA

Atopárom-no no meio dumha fraga perdida, deitado no chao verdecente, calmamente inerte, velho e engurrado como era. As roupas sujas, ainda molhadas da choiva e humidade da noite passada, e umha bolsa de pano velho ao seu carom. «O que é isto?», perguntárom-se, segundo pegavam nuns estranhos objectos que descobrírom no seu interior. Aqueles objectos, feitos de papel e papelom, eram o que antigamente se chamavam «livros». Assi o explicou um deles, com apenas quatro pulsons neuronais, as mínimas necessárias pra comunicar aquele pensamento por telepatia, o meio mais efetivo e vulgar de comunicaçom que existia nesses finais do século XXI. 

Mui atrás ficaram aqueles tempos de comunicaçom oral e escrita, com aquela miríada de línguas, e dialetos, que muitas persoas elevavam à categoria de entes em si próprios, e que mesmo chegavam a adorar como símbolos de identidade persoal e coletiva. Adoitavam dizer ao respeito, naqueles tempos longes, cousas como «a minha língua é o sangue do meu espírito» ou «a minha pátria é a língua portuguesa». Atribuiam, a certos padrons sónicos daquele primitivo canle oral, o estatuto de entidade própria e viva, falavam mesmo de conflitos entre essas entidades, de interferências, de misigenaçom, de loitas por espaços sociais ... Havia mesmo armadas inteiras de cientistas especiais, auto-chamados «linguistas», que lhes atribuiam determinadas qualidades e propriedades, que definiam o seus limites, as suas variedades, as suas essências e mesmo determinavam quais os seus usos incorretos. E a maioria das populaçons seguiam com atençom e respeito esses ditados. 

Mas tudo aquilo começara a desabar co advento das comunicaçons neuronais diretas e da telepatia. Houvera umha primeira fase nessa mudança radical da maneira em que os seres humanos se comunicavam. Fora primeiro a escrita dessas línguas e dialetos orais a mutar. Hologramas e códigos de leitura óptico-digital simplificada fôrom adaptados aos novos baralhetes que xurdiam pola interrede e nos trebelhos inteligentes de comunicaçom. A ubiquidade da imagem tamém ajudou a dar cabo das letras, e assi a indústria da ortografia foi perdendo os seus privilégios, e assemade novas indústrias, em ligaçom co tom dos tempos, ocupárom o seu lugar. Fora daquela que os lusistas galegos se tornárom umha sociedade de jogos de rol da rede. O lusistas galegos eram umha seita que adorava um certo ente linguístico, por eles imaginado e batizado co nome de «galego-português», e que só existia numha forma escrita arcaica, ortográfica. Umha vez que os novos meios de leitura de pensamentos tornárom a ortografia irrelevante, o lusismo — os lusistas — reunírom-se na interrede. Ali criárom umha sociedade alternativa, a ser acessada nos seus abondosos tempos de lazer, em que os seus mais intensos desejos e arelas se tornavam realidade. Criárom países e sociedades novas, onde eles eram sempre os heróis, criárom um império baseado nessa língua imaginada, e dotárom os seus avatares com sotaques lisboetas ou brasileiros. A eles, pioneiros virtuais, unírom-se logo outros nostálgicos do mesmo abstrato ente linguístico, amiúde antagonistas, por criarem formas alternativas ao mesmo ente, que armavam com ortografias e sotaques diferentes e manifestamente secessionistas. Enquanto isso, fora do seu mundo virtual, todos falavam o mesmo idioma, que era um vernacular galego-espanhol, velho reminiscente do português. Mas esse idioma já perdera qualquer valor identitário, pois aqueles tempos começavam a inçar com identidades individuais e coletivas mais modernas, ou seja, baseadas e vividas exclusivamente na interrede e em atividades e hobbies novos e mais estimulantes.

O golpe de misericórdia ao lusismo, assi como a tódalas ideologias e grémios artelhados em volta do ente imaginado linguístico — e da naçom que o falava — chegou co descobrimento e difusom da telepatia. Relegadas a simples artes marginais e démodés, cantadas ou recitadas, as falas dos humanos deixárom de ser codificadas e usadas como focos identitários coletivos. Muitos inteletuais devérom achar novas formas de parasitismo social, e os jogos de rol baseados nas entidades ortográficas fôrom desparecendo aos poucos, pois as novas geraçons, desconhecedoras da fala e das suas regras e entulhos gramaticais, preferiam jogos doutra natureza, sempre mais visual e aventureira. 

Fora entom que aquele velho home, lusista nos seus tempos mais novos, decidira recriar aquele ente imaginário, aquela forma de comunicaçom arcaica, com oralidade e escrita ortográfica antigas, a que costumavam chamar «galego-português». Deslocara-se pra um dos poucos e remotos lugares em que ainda subsistiam algumhas tribos pre-modernas, aqueles sucessores de religions e sociedades ideais ou prístinas: testemunhas do demo, muçulmanos da volta de Mahomé, budistas da pancada, contempladores do espírito silencioso, labregos do novo mundo ... Numha serra que no tempo dos estados-naçom fora zona fronteiriça, havia umha aldeia de casas de pedra e economia labrega, tal como eram antigamente. Os vizinhos eram gente já velha, e que se recusaram a adotar os meios de comunicaçom contemporâneos, preferindo viver como os seus antergos, falando cos órgaos fonadores, cantando, e mesmo escrevendo em papel, na pedra ou na terra as suas velhas ortografias. Ninguém os incomodava, e eles nom incomodavam ninguém, enquanto a austeridade da vida que levavam se lhes tornara algo normal e mesmo necessário. O derradeiro lusista, incapaz de se adaptar aos novos jogos de rol da interrede, decidira abandonar toda modernidade e viver com aquela tribo os derradeiros anos da sua vida. Com eles aprendeu a falar, por fim, aquela fala que fora imaginada como «língua galego-portuguesa». Corenta anos de interaçom virtual cos colegas lusistas nom lhe deprendera a falá-la, só a escrevê-la ou reproduzi-la em sintetizadores digitais, pois, como muitos criticavam judiciosamente, nengum dos lusistas sabia falar o galego-português. Quadrava que nom precissavam falá-lo, porque o seu choio era escrevê-lo (embora nengum deles tivesse grande talento nisso) e quando tinham de falá-lo empregavam os sintetizadores digitais, ou simplesmente empregavam o meio mais conveniente e moderno da telepatia. Mas aquela adoraçom dumha determinada ortografia, que eles defendiam afincadamente nos seus jogos de rol da interrede, e o uso dela sem qualquer relaçom coa própria fala, acabou por cansá-lo, e foi por isso que ele (assi como todos aqueles que nom eram Altos Cregos do Lusismo) acabou por se desligar daquele jogo de rol e da rede.

Nos seus derradeiros anos de vida, o derradeiro lusista nom ouviu falar outra cousa ca o vernacular arcaico daquelas gentes perdidas na serra perdida, e que era antigamente conhecido como português nortenho. Era um vernacular português mui diferente do lisboeta, por estar ateigado de galeguices daquela bisbarra raiota. Aquilo era o mais parecido que nunca houvera ao galego-português. Ao derradeiro lusista levou vários anos deprender a falar o galego-português, porque aprender a falar fluentemente qualquer língua nom é cousa que se poida faguer com quatro aulas por semana ou leitura de tratados de ortografia, e ainda menos vivendo num lugar em que o vernacular espanhol soa por toda a parte. Mas coa ajuda dos sus velhos livros galegos em papel e das conversas contínuas na fala portuguesa antiga e agalegada daquelas gentes, o «galego-português», na mente e na boca do derradeiro lusista, tornou-se umha realidade, ou seja, um ente nom virtual. Com ele pensava e comunicava oralmente os seus pensamentos aos seus vizinhos, e mesmo por vezes os escrevia, mesmo sem prestar grande atençom às suas estabelecidas regras ortográficas. Foi pena que a pouco de ter atingido esse estado já nom ficava um só vizinho na aldeia, tendo todos morrido de velhice. Chegaram novos povoadores, sim, mas eram dos que só empregavam os meios modernos de comunicaçom e só conheciam a telepatia ou a leitura óptico-digital dos trebelhos. Assi, o derradeiro lusista decidiu partir contra as fragas mais longes e falar o galego-português cos animais e as fróis da serra, mesmo ao preço de nom ser compreendido já por ser ningum, afora ele próprio. 

Nom sabemos quais seriam as suas derradeiras verbas, os seus derradeiros pensamentos em «galego-português», nem o porquê derradeiro da sua decisom de partir, mas temos como testemhunha os seus derradeiros escritos em arcaica ortografia, que deixou num daqueles «objectos» chamados «livros». 

Eles som já irrelevantes, e ninguém se há preocupar co seu sentido ou formas, pois o mundo vai sempre avante, e coma umha serpe vai ceivando as camadas antigas e inservíveis. Seica ele cuidara que, da mesma maneira que os vivos se refugiavam no mundo virtual, pra recriar ou viverem nele as suas arelas mais profundas, os antergos mortos se retiraram nas fragas, e ali era que ele poderia falar com eles o seu amado ente galego-português. Ou talvez simplesmente se cansara das falas humanas, na forma que elas forem, e degoxara viver mais puramente, escoitando o verso das augas dos regatos, as cântigas das folhas das árvores e os rechouchios dos paxaros, os ecos das suas pegadas na relva, o som do ar. Seica fora só isso.






Sunday 12 March 2017

SEMPRE HAI UMHA VEZ PRIMEIRA

Eu nunca gostei das gramáticas. As supostas regras e saberes que pretendem desvendar-nos sempre me parecérom suspeitos, por desnecessariamente artificiosos. Já perguntastes a umha criança sobre quando é que devemos usar o perfeito e quando o imperfeito? É-vos como pedir a um paxaro pra faguer umha disertaçom sobre a arte de voar, ou como tentar meter um curso de auga numha caixa. E o que dizer de todo o entulho que acompanha qualquer enunciado, e que vem sendo objecto de demorados estudos por esses coprófagos da língua, chamados linguistas? Mas o pior disto é quando com toda essa bosta se constroem ensaios, livros, enciclopédias, enquanto os seus autores vivem alheios ao simples agarimo da bris, ao som das suas pegadas na relva, ao recendo das frois da primavera. E como pra se vingar dessa argalhada em que escolhérom se aferrolhar, cometérom a ainda meirande vileza de querer impor esses saberes do ignorar a tódolos seus semelhantes. Crimes hai moitos e variegados, mas o de impor às crianças o «correto» uso da língua, ou gramática, nom é dos menos crueis. Todos esses professores deviam ir prà cadeia aginha. Aliás, qualquer persoa que se alporiçar co uso incorreto da ortografia, segundo os seus parámetros própios, ou herdados, dessa arte da tirania escrita, deveria ser posto em correntes e enviado de contado prà Sibéria ou qualquer outro lugar terrível.

Seica é por isso que eu me tenho tornado um terrorista da língua. Por essa injustiça, e mais por ser galego. Segundo dim os linguistas, eu nom tenho língua, ou seja, eu e os que nascérom num certo recuncho do sudoeste da velha Europa. Nós, sabedes, adoitavamos falar dumha maneira natural, na casa, na escola, cos amigos polas ruas, mas dixérom-nos que aquilo nom era maneira digna de falar. Começámos logo a mudar a nossa fala, pra contentar os coprófagos e os que mandam. Chegámos mesmo a copiar o jeito de falar daqueles que diziam falar segundo as regras de correçom, que eles próprios inventaram. Mas nunca foi correto dabondo, porque ninguém é quem de falar coma um amo e pensar coma um escravo. Daquela, alguns — alguns dentre nós — decidírom criar umhas regras próprias, umha gramática ateigada de entulho e bosta nossa, pra colocar a carom da dos amos, e nom ofendê-los coa nossa falta de decoro e respeito polas normas da sua gramática ateigada de entulhos, de regras de conjugaçom, de formaçom de sufixos, de concordâncias do predicado e outras bostas mui dignas deles. 

Dessa maneira, esses poucos dentre nós esperavam se tornar, coma os nossos amos, mestres da arte da bosta falada e escrita, e atingir assi umha certa sona. Deseguida eu me decatei desta grande ilussom. Estudando essa nova gramática e ortografia de nós, o único que conseguia era encher as maos de merda, e sempre ia prà cama com esse cheiro a morfologias verbais corretas e combinaçons de pronomes ajeitados, um cheirume que me dava mazelas, que nom me deixava dormir bem. Foi por isso que deixei de ler essa gramática de nós, e, arrenegando da minha fala ateigada de entulho e bosta própria, comecei a escarnecer os meus antigos colegas.

Libertado desse peso, e aguilhoado polo prazer de poder ridiculizar livremente quem se pretende amo e criador de regras da correta bostalidade, comecei a adoptar costumes e jeitos pouco edificantes: deu-me por  pescudar no português, esse galego de alhures que se pretendia nobre e sublimado. Assi é que eu comecei a falar coa pior gentalha, a ler revistas pra mulheres, bandas desenhadas prà crianças e manuais de funcionamento de trebelhos, a ouvir cântigas galegas dos trópicos, a ver vídeos pornográficos brasileiros (em que o tamanho do caralho ou dos seios, assi como a forma do cu e das pernas, tenhem umha verdadeira razom de ser, à diferença das regras de acentuaçom dos plurais). Era aquele um exercício que me divertia enormemente, achava cómico aquela seriedade com que umha fala escrava se levava a si própria, e mais dumha vez houvem ser enxotado ou bourado. Emporisso, co decorrer dos anos, aquele vício de meu foi modificando o meu falar escravo, tornando-o mais largo e mais viçoso, fazendo-lhe xurdir novas ponlas e folhas, verdes e rechamantes, de forma que as regras e entulho e as bostas dos idiomas portugueses fôrom se misturando, sem nengum respeito nem consideraçom, coas minhas galegas originárias. 

Este processo degenerativo deveria ter parado aquando eu emigrei pra onde as ilhas britâncias. Aprender o inglês, língua acugulada de entulhos e bostas onde as houver, devera ter ocupado tódalas minhas energias e atençom, pra eu poder ser quem de servir os cafés em londres ou limpar os quartos em Edinburgo com jeito. Mas, ai, nom sucedeu assi. Porque tamém havia, por essas latitudes e empregos tam cobiçados, umha moreia de gentalha proveniente daquelas partes em que se fala o galego sublimado, ou português. E colocadas umha junto das outras, a minha fala de bosta galega e as falas de bostas altissonantes, nom havia mais distâncias entre elas do que hai entre a fala londrina e a edinburguina, que som pretensamente umha só fala, um mesmo idioma em que inçam as mesmas bostas. Consequentemente, a morrinha e a saudade, e mais as necessidades vitais de comunicaçom num meio alheio, figérom com que esse rebúmbio promíscuo da minha fala e as falas portuguesas nom só enfraquecesse, mas ainda se reforçasse e acelerasse. Deu-se aí, ao que parece, um fenómeno de simbiose, até ao ponto de chegar a se cuidar, essa minha marfalhada falada, umha grande bosta digna de admiraçom e passível de ser codificada.

É por isso precisamente que eu comecei, crebando os meus antigos arrenegos, a estudar as regras da gramática portuguesa, pra ver se qualquer cousa parecida puidesse ser feita coa minha fala galega, mesmo ao preço de criar umha ditadura nova. Só por curiosidade. Pero consoante estudava e aprofundava no português eu ia adotando, quase inconscientemente, muitos dos seus jeitos, até o ponto de chegar a cuidá-los propriamente galegos. É por isso que eu já fum identificado, e ainda som identificado, frequentemente, como português. Porque a pesar da minha ignorância das regras de boa lei da língua sublimada, a minha fala escrava vem-se tingindo por riba e por baixo coa fala dos portugueses, a até hai quem diga que isso é por mor de o português provir dela. Difícil de acreditar, tam difícil como que o homem vem do macaco. Em qualquer caso, acho que eu já conheço o português, apenas minimamente, como pra reconhecer o seu cheiro fedorento à distância, e apreciar o valor dos seus entulhos e bostas, tam variegados e distintos em cada parte onde se fala.

E assi, umha vez armado co arsenal do português, a morrinha levou-me de novo a deborcar as minhas pescudas no galego. Isso eu figem dessa maneira espontânea que tenhem as crianças, sem grandes princípios de bostalidade. Comecei a maginar umha gramática galega, umha nova gramática galega. Haveria ser umha gramática ateigada de bosta portuguesa e doutra muito mais antiga, e distintamente galega. Umha mistura horripilante. E tenho aí essa bosta na casa, aliás, tenho-a, levo-a na ponta da língua, e sempre prestes a arrebolá-la a quem me aldraxar. É umha criaçom mui ofensiva, mestura de galego com português sem qualquer respeito polas normas mais civis de civilidade, e quando levo umha cerveja preta ou duas nas veias perdo todo o pudor, e amosso-a a quem quadrar passar por diante, seja galego, português, brasileiro, moçambicano, caboverdiana, tanto me tem.

No entanto, chegou um dia em que andavam, perto de onde eu moro acô na Inglaterra, à percura dum professor de português; eram umhas persoas dessas que adoitam ir de férias pra Portugal, prò Algarve, por possuirem ali algumha moradia. Persoas britâncias que precisam de aprender um bocadinho de português. E nom havia à volta delas, ao que parece, nengumha persoa tam qualificada, pra lhes aprender o português, coma mim. Nom duvidei um intre em pegar na ocasiom.

De caminho prà primeira aula — era já noitinha — eu imaginava as barbaridades que poderia apresentar-lhes ali: pronomes de solidariedade, trato formal coa segunda persoa do plural, betaísmo, entonaçom galécia, ditongo indoeuropeu ... aquilo tudo, apresentado nos contextos ajeitados, e praticado com motivaçom, nom passaria, no Algarve, por mais estrangeiro ca o falar português do embaixador Carlucci. Ria eu pra mim, e desfrutava da liberdade dos paxaros que rechouchiavam ao meu passar su-la luz dos farois ...

Quando abrim a porta do local, a claridade da sala de aula bateu-me violentamente nos olhos. Tivem como umha iluminaçom, umha revelaçom súpeta e profunda: o que era que eu fazia ali? Um galego, a dar aulas de português, na Inglaterra. Como era que um tal fulano tinha aprendido, acô, o português, esse galego pretensiosamente digno e nobilitário? Aliás, como era que PRETENDIA ENSINÁ-LO? Estando aló fora, nada admiraria que tivesse mentes de ensinar o espanhol, língua prestigiosa e de origem muito menos vil, e que bem lhe fixérom aprender como correta bosta própria. Mas, português? Fum consciente de estar a crebar os planos da escravidom, os planos do domínio, os planos do medo, os planos da Grande Bosta. Eu levara anos a me debater entre as bostas e agora estava a um passo de começar a ensinar a BOSTA ERRADA, ali mesmo, a uns quantos passos da aula de espanhol, onde umha rapariga espanhola já começara a ensinar o único que se esperaria que eu, grande coprófago arrenegado, era que devia aprender a outrem.

Coma um lóstrego, umha visom, aliás um sonho milenar, percorreu o meu espírito. Vim-me a caminhar por trilhos e vieiros dantes nunca percorridos, a alancar por cómaros verdes e enchoupados, vim-me a choutar valados, a correr a valmontes, tripando sebes. Vim-me a agatunhar no meio de cantis, maravilhado ante o vo do mascato, a rubir e a baixar as cuínhas, a atravessar regatos sem tirar as roupas. De quando em vez enxergava alguém ao longe, a tentar outros caminhos, e por vezes mesmo passava ao lado dum outro coma mim, coas roupas todas luxadas e molhadas, os gionlhos desfiados e os braços arrabunhados das silveiras, e trocavamos um sorriso e quaisquer notícias «por ali nom vás que che hai muitas penas, é-che milhor por acolá», «ah, pois eu por ali tampouco puidem passar, é milhor provares do outro lado» e sem nos decatarmos aginha nos separavamos e continuavamos a nossa caminhada. E eu mesmo rubira ao cúmio dum curuto, porque ouvira falar de nom sei qual autoestrada que levava ao nosso destino sem termos de rubir e descer as montanhas, que bastava pegar num autocarro, sem ter-se de luxar as roupas e mancar o espírito. Mas dali em riba eu nom enxerguei umha tal cousa por lado algum. O único que alvisquei, quanto mais ao longe, foi um largo delta adormecido em brêtemas mornas. E havia muitos braços sinuosos, e cada um deles levava as suas augas passeninho, e ia depositando as próprias bostas, igualmente inuteis e importantes, que fertilizavam assemade o delta. Nom havia aló autroestrada algumha, nom havia ali um grande Amazonas, havia era um delta de muitos braços. Eram mil anos de caminhada a confluirem num abondoso delta futuro, e cara ele eu marchava, suando e vagaroso, mas nom marchava só.


* * *

Quatro persoas já estavam ali, na sala de aula, à minha espera. Os seus olhos, inseguros, tímidos, esperando encontrar alguém que os guie, aliás, que lhes dea confiança e faga sentir à vontade e ver que eles som quem tamém de entender e falar um chisquinho o português, a língua galega de Camões. Tódalas regras e o entulho e as bostas e os medos e a escravidom caírom entom coma um só corpo morto, as minhas brêtemas esvaecérom e me deixárom, por fim, ver a claridade do horizonte, o delta. Entom eu falei, «ɔˈla, ˈboɐ ˈnojt(ə), tuduˈbɐ̃j̃?», co meu mais aperfeiçoado sotaque lisboeta.



Monday 21 November 2016

WINNER TAKES ALL (III) (Um rapaz da Madeira)

E Portugal, contra tódolos pronósticos racionais, chegou à final do Europeu de Futebol. Porque, entre outras cousas, contou coa ajuda da deusa fortuna, sem a qual nem a melhor equipa do mundo consegue tal façanha. Vede se nom a Espanha, que sem as decisões arbitrais a seu favor, a lotaria dos penáltis e certos lances desesperados, tudo isto em várias ocasiões, nom teria ganho rem. Mas tamém é verdade que, sem o melhor jogador do mundo, Portugal nom teria chegado onde chegou, mesmo que este jogador nom tenha estado em grande forma. Emporisso, o seu valor reconhecido, como jogador, é-lhe negado, por muitos, como persoa. Na Inglaterra, os trolls e os "Ronaldo haters" estivêrom sempre mui ativos pra vazar os seus juízos e condenações, sobretudo após aquele incidente co jornalista, em que o Ronaldo lhe tirou o microfone e arrebolou-lho numha lagoa. Nom bastava com ele estar a jogar por baixo do seu nível, agora já havia motivos pra qualificá-lo de arrogante e ruim. No entanto, eu, que nunca fum um grande admirador dele, conseguim albiscar algo mais fundo nessas críticas e ódios: é que o que nom se lhe perdoa, numha sociedade classista como a britâncica, é que um estrangeiro e de classe popular tenha chegado às alturas aonde ele chegou, mesmo ao ponto de desprezar o Manchester United em favor do Real Madrid.

Porém, é verdade que o Ronaldo tem um grande ego, o que acrescentado à sua belida aparência, à sua riqueza e sucesso coas fêmeas, atrai o ódio desses trolls e invejosos, tam aleutos pra vazarem, do anonimato dos seus computadores, as suas frustrações numha figura pública. Ainda assi, o que esses medíocres nom compreendem é a determinaçom e ambiçom que guia o Cristiano Ronaldo, e que fai com que tenha umha capacidade de trabalho e sofrimento enormemente superior à de qualquer um deles. Essa capacidade de salto com que ele maravilhou contra o País de Gales, nom é so natural, mas decerto que é tamém o resultado de intensíssimos e constantes treinamentos. Por quanto se sabe, ainda nom nasceu o jogador inglês de futebol coa mesma dedicaçom ca o Ronaldo. Mas os "Ronaldo haters" só sabem falar do lado negativo do seu aspeto social e glamoroso, aproveitando pra alargarem a Portugal inteiro o seu ódio.

Em qualquer caso, neste Europeu houvo umha ocorrência que fixo de mim um admirador do Ronaldo. Foi quando aquele seareiro saltou pró relvado pra tirar a selfie com ele. Via-se que era um rapaz que admirava excessivamente o CR7: estava nervoso, quase chorando, porque a câmara nom lhe funcionava e os seguranças estavam já ali pra o prender. E o Ronaldo amossou aí a sua grande capacidade humana. Quando qualquer jogador ou estrela, nesse momento de grande tensom de antes do início dum jogo decisivo, teria ignorado por completo ou mesmo desprezado esse fam, Cristiano Ronaldo deixou-se aproximar dele e mesmo tivo a paciência e a bondade de pedir aos guardas pra esperarem polo rapaz tirar a selfie, pondo agarimoso o seu brazo nos seus ombros.

O rapaz da Madeira que pra treinar a velocidade, no seu Funchal natal, punha pesos nos tornozelos e botava carreiras aos carros nos semáforos, e que acabou chegando ao topo mundial como jogador de futebol, estava ali pra levar o seu país a glória, ao prezo que for, porque ele acreditava na glória dos heróis do mar, do seu nobre povo, e nom só no seu próprio ego. Mas apesar dos altos desígnios que já se preparavam pra ele e a sua naçom valente e imortal, apesar das invejas e ódios dos ruins, ele nunca deixou de ser o que é: um rapaz da Madeira. Talvez por isso a fortuna lhe sorriu.



Sunday 20 November 2016

WINNER TAKES ALL (II) (Aventuras dum galego na Inglaterra)

Disque quem começa mal acaba mal, e isso mesmo é que eu pensei após o primeiro jogo de Portugal nos Europeus, contra a Islândia. E os jogos a seguir parecia que iam confirmar a sabência popular, porque Portugal apenas conseguiu apurar-se pràs eliminatórias por um triz, mercês à nova regra que permitia o apuramento do terceiro classificado (num grupo de quatro equipas!). Se bem o probe jogo de Portugal nom me surpreendeu muito, visto como vinha jogando nos últimos tempos, eu fiquei um algo abraiado pola pouca simpatia, mesmo xenreira, que a nossa equipa suscitava, acô na Inglaterra. Falo do que ouvim falar e mais dos comentários dos internautas futeboleiros. Portugal nom só era umha equipa sobrevalorizada, mas ainda dava nojo vê-la jogar, a arranhar empates e mostrar-se incapaz de faguer qualquer jogo positivo. De facto, segundo chegeui ao trabalho, no dia seguinte ao devandito primeiro jogo, encontrei esta mensagem, enviado por um colega, na minha caixa de emails: 

Iceland – part timers 1 and the mighty Portugal ????
Heads will roll!!!

Love it.

Abonda isto como exemplo da simpatia que o britâncio sinte polos «underdogs», sejam chaínhas ou nom, mas nom só: ver um poderoso Portugal, co seu todo-poderoso Ronaldo, falir perante umha equipa claramente inferior, é motivo de alegria. De facto, mesmo quando Portugal conseguiu o apuramento, dessa forma tam ruim e aqui vista como injusta, o pronóstico dos comentaristas era sempre pra umha derrota de Portugal no próximo jogo. Portugal havia ser esmagado pola Croácia, a sua boa sorte havia rematar em Polónia, a Bélgica ou o Gales haveriam colocá-lo no seu lugar de batoteiros e choramingões, e já na final a Francia havia malhar três ou quatro golos em Portugal ... E isso sem falar da Ronaldofobia, dos Ronaldo-haters, sempre a alongar o seu ódio por Ronaldo a toda cousa portuguesa. É triste ver coma um país que históricamente foi um grande aliado dos britâncios, é assi bulrado e desprezado, mesmo que seja só no eido futebolístico.

Em qualquer caso, eu resolvim, no que a mim tocava, nom responder a essas críticas e ataques, senom polo positivo: sim, é verdade, nós jogamos mal, tivemos muita boa sorte, apuramo-nos sem merecer, bla bla bla ... a humildade é a melhor maneira de fazer face a um mundo hostil.

Mas um belido dia ocorreu que à Inglaterra quadrou defrontar os «part-timers» da Islândia, e nom só nom conseguiu vencê-la, mas ainda perdeu e ficou eliminada. Agora os críticos e odiadores do Ronaldo virárom os seus ataques prà própria equipa, ou simplesmente desaparecérom em baixo da terra. E ao dia seguinte desta desfeita inglesa, com certeza a meirande humilhaçom já sofrida por eles, quando eu cheguei ao trabalho pensei por um intre retrucar àquela mensagem do colega, já que nom lhe retrucara no dia, com algo como

Did you love Iceland? Not half as much as me, mate 

Mas decontado cuidei que este tipo de mensagens nom seria cousa muito positiva, prà nossa imagem, e poderia mesmo acrescentar o ódio que já nos dedicam. De modo que eu, pra nom ser qualificado como «the enemy within» limitei-me a reproduzir as mesmas atitudes que os ingleses haveriam mostrar naquele dia. Afetando ora certa indiferênça, ora criticando a inutilidade do chaínhas do treinador, ora a inutilidade dos chaínhas jogadores, ora mudando de tema de conversa. E como o inglês é umha persoa incapaz de levar-se a sério, tamém nom faltárom piadas sobre a própria desfeita:

"England should struggle to beat Aldi, never mind Iceland" (que é tamém umha cadeia de supermercados)
"Hodgson, the only man in England with a coherent plan for leaving Europe" (em alusom ao Brexit, votado no dia anterior)
"Just to remind you once again: even if England lose we don't go out of the tournament until we invoke Article 50."
"Only England could manage to exit Europe twice in one week "
"England couldn’t even beat the Choco of Redondela or the Rápido of Bouzas" (equipas de chaínhas galegas onde as houver)

Chegando ao final daquele preto dia preto (nom tam preto pra mim), o ambiente na sala onde eu e os colegas estavamos ligados em cadanseu computador tornava-se por momentos deprimente, ninguém falava. O ar podia-se cortar cum coitelo, e assi veu-me um súpeto impulso terrorista. Voltando-me pra umha colega, decidim largar a bomba, na forma dumha pergunta inocente, e tamém com cara de inocente:

«Maruxinha (o nome é falso, pra que nom me detetem), e logo viche qualquer cousa interessante onte na televisom?»

De relance, apercebim coma o meu colega da mensagem islandesa ia afundindo, aos pouquinhos, a cara no teclado do seu computador.




Monday 7 November 2016

WINNER TAKES ALL (Aventuras dum galego na Inglaterra)



É costume mui britâncio, aquando os grandes acontecimentos desportivos, o faguer apostas no lugar do emprego. Assi, co galho do Euro 2016 de futebol, e pra participar nos costumes costumeiros no meu emprego, tivem de tirar, em troca dumha libra esterlina, umha bolinha de papel dum saco de plástico. Havia neste saco, que umha colega me protendia, muitas bolinhas, nomeadamente 24, umha por cada equipa participante. Eu fum um dos últimos em tirar a bola, e quando metim a mao no saco já nele nom estavam as melhores equipas: a França, a Alemanha, a Espanha, a Inglaterra, a Itália ... Ainda assi, coas que restavam pensei armar um bocadinho de festa, e antes de tirar a minha bola remexim em todas elas e dei palmadinhas no fundo do saco, hop, pra as fazerem remexer e choutar, hop, hop, como se fosse algo mui emocionante. A colega que tinha o saco nas maos, embora nom dizia nada, devia já ir um algo impaciente, à espera de eu parar de faguer o macaco e tirar a fodida bola de vez. Enfim, após a minha exibiçom de suspense, cum sorriso mui retranqueiro tirei umha bola, e passei-na a umha outra colega que ali ao lado assistia a este sorteio que nem o Blatter e o Platini. Esta colega abriu a bolinha de papel que quadrava, precisamente, a este galego que se fai de português, e queredes saber que equipa nacional me tocou? Sim, PORTUGAL.

A gente ficou bastante surpreendida e divertida, «olha que o português veu a tirar a bola de Portugal, how funny, what a coincidence!» Mas ninguém deles suspeitava o ledo que eu me sentia deveras nesse momento, nom por ser português, como todos erradamente pensam que som, nom, mas porque eu som, com efeito, um grande torcedor da seleção das quinas. A verdade é que já nom tenho a paixom polo futebol que eu adoitava ter de neno, e ainda menos polo negócio que o futebol de hoje se tem tornado. Mas quando joga Portugal fica tudo em suspenso, e eu torno-me mais um torcedor da seleção. Que lhe querem, cada quem tem as suas fraquezas e estranhezas. E agora eu tinha mais um incentivo engadido, nomeadamente económico (24 livras), pra torcer por Portugal. Sentia-me mesmo como parte da equipa, cum interesse direto e pecuniário em ganhar o Euro. Mesmo que eu jogasse tanto coma o terceiro guardarredes, eu haveria levar tamém um bônus. Nunca tal cousa, em toda a minha carreira de seguidor de Portugal, me ocorrera. 

Contudo, e por muito fam que eu seja, nos últimos anos eu já vinha perdendo um algo de paixom. Nom por culpa minha, nom, senom devido aos pobres resultados que Portugal tivo (pra nom falar do fiasco do 2004). Em qualquer caso, antes de a competiçom começar eu botei umha olhadela à equipa, pra avaliar as nossas hipóteses de levarmos o bonus (£24 no meu caso, no dos jogadores um pouco mais) e o caneco. Vejamos: bons guardaredes, até ai tudo bem. Na defesa: mau, mau. No centro, o brasileiro batoteiro do Real Madrid, que nunca se sabe quando vai levar o cartom vermelho e estragar as nossas hipóteses, o Carvalho centenário (ele-nom se tinha retirado na década passada?), o Fonte, jogador de meio nível na Premier league, e mais o Alves, que se quadra tem mais jeito pró kung-fu. Nos lados temos um que nem fala português, outro do meio nível na Premier, e o Cõentrao nem sequer está. Restam o Costinha e o Lisandro. Por tanto, umha defesa insuficiente. Meio campo: o William, que é bom mas teria problemas pra se apurar prà final dos 100 metros pra maiores de 60 anos. Despois temos um outro francês, um rapaz de 18 anos, e o Moutinho que já vai velho. O resto som jogadores aceitáveis, só isso. Na frente: o Ronaldo, que está fora de forma, como se viu na final dos Champions, o Nani, que tivo o seu momento há por aí 10 anos, o mesmo que o gajo das trivelas. E pra rematar, o meirande chaínhas da Premier league nos últimos anos, o Éder. Treinador: um fulano que andou pola Grécia e vive permanentemente com cara de ferreiro. Pobrinha a mulher!

Enfim, nom dá, nom dá pra nada. Estou mesmo a pensar em vender a minha bolinha, talvez consiga uns 50 pens. O pior de tudo é quando ligo a RTP on line: Great expectations! «Temos muitas hipóteses, queremos jogar a final, aliás, vamos ganhar a taça!» Enfim, é-che o que há, meu, som portugueses, um povo bem simpático. E eu som supostamente um deles!

No trabalho fala-se de vez em quando de quem vai ganhar, de quanto vai durar a Inglaterra antes de fazer o ridículo mais umha vez, desta ou daqueloutra equipa. Eu cuido que vai ganhar a França. A Alemanha porém sempre ganha, mesmo quando joga mal, é verdade. Portugal? Naaa … Todos concordam, Portugal é só Ronaldo. Isso mesmo digo eu tamém, como muito chegamos às eliminatórias; acho que podemos vencer a Islândia e a Hungria, a pesar de tudo. No meio destas conversas descontraídas sinto-me à vontade, sinto-me coma um embaixador de Portugal, povo de gente humilde e simpática, que até falam umha espécie de galego. Porém, dalgumha maneira que nom consigo explicar, sinto-me tamém mancado, um pouquerrechinho, no meu orgulho. Talvez devim dizer que Portugal nom é só Ronaldo, que Portugal tamém tivo um império e navegou por mares dantes nunca navegados ... Mas cumpre ter os pés bem assentes na terra, e nom dizer cousas de que se arrepender mais tarde. Umha noite antes dos jogos vou-me deitar. Enquanto adormeço contemplo, por uns intres apenas, Portugal a ganhar jogos, a fazer um grande Euro 2016. Com certeza que aqui, na Inglaterra, nom som o único a acubilhar um tal sonho ... 

(Fim da primeira parte)

Tuesday 11 October 2016

A ONÇA MORREU, MATO É MEU (aventuras dum galego na Inglaterra)

Nom muito tempo há, porque o tempo é cousa mui relativa, em sentindo saudades de nom sei o quê, acô na fria Inglaterra, inscrevim-me num clube de capoeira. Eu já ouvira falar dessa estranha arte brasileira, com nome como que de pitas ou galinhas galegas, mistura de bailado e de loita marcial, e velaí que o dia foi chegado pra eu o experimentar. Sendo eu como era ainda moço, ou nessa idade em que o corpo ainda consegue fazer, com algum pequeno esforço engadido, o mesmo que fazia mais à vontade vinte anos atrás, juntei-me a um grupo de moços e moças, todos mais jovens ca mim, e por certo mais viçosos de corpo e aleutos na arte. Havia ali gente de todo o mundo. Havia mesmo um rapaz checo que adeprendera sozinho a capoeira no seu país, assistindo no youtube. Os mestres falavam bem inglês, e recebíram-me mui afavelmente, como noviço que era. Pra nom crebar qualquer harmonia e evitar todo trato de favor, eu falei-lhes tamém inglês, embora eu sabia que eles partilhavam comigo um certo elo linguístico. Gostei muito da capoeira, desse ritmo e músicas, desse esforçar o corpo em movimentos como que de ondas do mar. Foi pena que nom me tivesse iniciado em neno, pois há cousas, digamos um sentido da arte, que nom se dam apreendido tam facilmente em adulto. Eu conseguim contudo reproduzir alguns movimentos, nom sem certa graça, mas o sentido da loita e bailado simultâneos escapavam-me por completo. Emporisso, pagava a pena alô estar, e participar plenamente, coma mais um deles, nos aquecimentos e na prática dos movimentos fundamentais, assi como escoitar o tanger e bater daqueles instrumentos tam exôticos, esculpidos em madeira e peles tropicais.

E por isso mesmo, porque a capoeira nom só é dança e loita, mas tamém palmas e cantigas, aconteceu um dia que um dos mestres capoeiristas introduz a turma à umha cantiga, e vai-nos fazendo repetir as letras, verso por verso, pra podermos engadir o canto às palmas e à roda de capoeira. Ele dizia um verso, e os alunos repetiam, sem saber o significado das palavras. Achei engraçado como o sotaque inglês se fundia no brasileiro, numha ladaínha misteriosa e incomprensível pròs participantes. Mas nom pra todos eles. Porque segundo eu me ia soltando no ritmo das palmas e da voz, o significado da ladaínha ia atingindo na minha mente tonalidades verdadeiramente conhecidas: aquela era umha cantiga galega. O mestre ia encorajando o persoal, porque já se sabe o difícil que é falar umha língua estrangeira, e ainda mais cantá-la batendo palmas, de modo que ele ia dando à roda atençom personalizada e conselhos, como se fosse um mestre de língua portuguesa. Quando chegou quanda mim, parou a me escoitar, sorriu abertamente, acenando em afirmativo coa cabeça, e deseguido continuou pra atender quem ainda nom conseguia cantar bem os versos.

E assi, segundo os capoeiristas da fria Inglaterra iam apurando a sua proépia brasileira, nassalizando e e pronunciando ao jeito propriamente brasileiro, em ritmo co bater das palmas e de tambor, do tanger do birimbau, eu acô ia matando as minhas saudades, sem preocupar-me mais da minha pronúncia galega do que um brasileiro em Lisboa da sua própria brasileira.

Havia porém mais umha diferença entre eu e os meus colegas de turma: Eles cantavam umhas palavras estranhas, cujo significado lhes fora explicado, em inglês. E eu, que nom precisara daqueles esclarecimentos, estava a cantar na minha própria língua. Acô, numha terça feira do outono da fria Inglaterra, longe mui longe da Galiza ...

Algum tempo mais tarde pescudei as letras daquela cantiga na internete. Ei-las:


A onça morreu, mato é meu
Mato é meu, mato é meu
A onça morreu, mato é meu
A onça morreu, morreu, morreu
A onça morreu, mato é meu
A onça do mato agora sou eu
A onça morreu, mato é meu
Mato é meu foi o meu pai quem me deu
A onça morreu, mato é meu


E velaqui como muitos anos despois de eu andar polo mato da Galiza, a sentir o arrecendo da onça sem nunca conseguir vê-la, decatei-me um belido dia de que o mato galego, o meu mato, era em realidade muito mais largo do que me tinham dito, e ele-havia árvores e criaturas exóticas, e o arrecendo da onça pairava por todo ele …









Monday 10 October 2016

SE VAS AO BRASIL ...

Quando um meu tio-avô decidiu emigrar prò Brasil, ha já mais de cem anos disso, diz-que foi quanda a sua madrinha, "despedir-se"(pedir quartos?). Eu nom sei porque ele teria escolhido esse país, e nom algum outro. Decerto que a similitude linguística e cultural foi um facto de peso na sua decisom. Ou talvez tenha ouvido boas cousas do Brasil, ou mesmo tivesse "contatos" ali. Em qualquer caso, quando dixo à madrinha que marchava pra America, a única resposta que obtivo dela foi umha frase dabondo lacónica, que passou a formar parte da mitologia fraseológica da minha familia: «que che pinte!». Velaí o equivalente galego de «boa sorte», mas dito com muita retranca. E eu suspeito que a retranca, neste caso, era um mecanismo de desdramatizaçom que as persoas tinham naqueles tempos. 

Umha vez chegado “no” Brasil, mais umha vez segundo a minha mitologia familiar, cumpria um período de adaptaçom linguistica ... de aproximadamente cinco minutos. A verdade é que o que se falava naqueles tempos no Brasil, o léxico e o baralhete vernaculares, devia ser mui diferente do galego (situaçom semelhante à de qualquer inglês emigrado pròs Estados Unidos) mas quando se trata de buscar-se um meio de sobrevivência, a língua fica reduzida ao mais elemental e necessário. As nuances e normas gramaticais desaparecem e o único que resta é aquilo que liga as necessidades básicas duas ou mais persoas. Os sotaques e as maneiras de falar som mais um elemento dessa paisagem bizarra que se forma em qualquer país colonial, tendo-se que se lidar com eles segundo aparecem, sem ter de os questionar ou evitar, e mesmo adotando-os segundo convenha. É por isso que os galegos deixárom no Brasil inúmeras amostras da sua cultura e língua. Neste último eido, seica a própria expressom galega de «pintar», no senso que a madrinha de meu tio-avô lhe dera, tenha passado ao português do Brasil: 

http://www.aulete.com.br/pintar 11. Bras. Pop. Conter boas perspectivas; apresentar boas possibilidades [int.: Esse filme está pintando para o Oscar] 

Já que logo, se vas ao Brasil ... que che pinte!