Friday 11 March 2016

BILHETE DE IDA E VOLTA



Era umha assoalhada manhã de inverno, e eu descia apressado cara a estaçom do caminho de ferro. As ruas desta minha cidade cotoeira estavam ainda molhadas da choiva da noite. Achegando-me a um desses homes que vendem os bilhetes à entrada dos cais, resolvim falar-lhe na minha melhor fala da terra, pra ver se desta vez me percebiam sem eu ter de repetir ou de proclamar a minha estrangeirice. Questom de fazer da compra dum bilhete de trem de ida e volta prà capital do condado um exercício tam normal coma o da compra dum saco de batatas no mercado da vila onde me nascérom, lá nas Terras Quentes do Sul. Hello, a return ticket to Cam-ches-ter  (chapodei bem no nome, como costumam fazer os enxebres d’eiqui), please. O home, de escura aparência, como qualquer um desses asiáticos que chamam eiqui em contraposiçom dos “brancos“ (que som mais bem rosados), e que tanto adoitam trabalhar nesses negócios em que se trocam papeizinhos de cores por cartonzinhos doutras cores, ficou a olhar pra mim, coma se abraiado por qualquer cousa, e mesmo semelhava que andava a esculcar na minha pretensa casual olhada. A sensaçom de incomodidade ou de insegurança que me foi vencendo, perante esse percebido escrutínio da minha ialma, e que decerto ele albiscou no fondal dos meus olhos, tornou-se em surpresa quando à minha demanda se seguiu umha resposta no que semelhou ser umha língua mui familiar: dois e quarenta e cinco. Era isso que eu percebera, dois e quarenta e cinco. Sabendo moi bem eu que nom estava numha qualquer estaçom das terras quentes do sul, dei em pensar que nom devia ter ouvido bem: sorry?, dixem, como pra confirmar a minha pressuposta ilusom auditiva. A resposta que veu a seguir já nom deixou dúvida nengumha enquanto às minhas questionadas (apenas por mim) habilidades auditivas ou perceptivas: são dois e quarenta e cinco. (Como?, dixem eu pra mim, enquanto o home continuava a me-fitar nos olhos — e tal fazia coa expressom de quem vem de descobrir um conhecido ou um conterrâneo entre a multidom anónima dos homes estrangeiros — ele-dixo « dous e corentecinco »?)
Procurando os quartos no meu porta-moedas falei-lhe na fala das terras do sul : 


Ah, fala gal ... português? ... ... 
Falo, sim ... 
... Ah ... e lo’ ... entom é brasileiro ou ... 
... Indiano, de Goa... ... dixo ele, oferecendo a mao em cunca sem deixar de me-olhar. 
Ah ... muito bem ... aí tem  (dei-lhe um bilhete de cinco livras) ... obrigadinho ...  Já está pra chegar ...  Adeus ... 
... Adeus, boa viagem ... 

e botei a correr cara o cais, donde já se ouvia o bruído do meu comboio que, vindo das vilas do norte do condado, entrava na estaçom, eu abraiado como estava de ter sido apanhado na minha galeguice, acô na ilha de Alba. Decerto que o home deveu enxergar qualquer cousa no meu sotaque, e mesmo na minha pinta de galego, que lhe fixo pensar que era um português quem lhe pedira um bilhete de ida e volta prà capital metropolitana do condado. E decerto que aló, em Goa, muito mais prò sul do que a minha terra, e tamém muito mais prò leste, nem teria ouvido falar dela. Emporisso, ele dexergou algo do seu em mim, quando eu nunca ousara imaginar que um home de terras ainda mais longínquas e quentes do que as minhas fosse me-reconhecer como alguém com quem partilhar os seus falares escuros, acô nas frias terras ilhegas de Alba.



Pensando nestas e noutras cousas tam mundanas cheguei ao meu destino, fixem as cousas que tinha a fazer na grande cidade, sem ter de falar com homem ninguém, pr’além do troco de papeis ou dalgum monossílabo na lingua saxona — que mesmo se tiver sido proferido numha outra qualquer nom teria mudado nada pra mim, nem pr’o meu interlocutor — e ao final do dia peguei no comboio de volta prà minha cidá cotoeira. Chegado à saída do corredor onde mercara o meu bilhete, na estaçom de partida, nom ficava lá mais ninguém pra conferir se os viajantes que voltavam tinham comprado os bilhetes, ou se polo contrário eram desses homens que querem viajar de balde, por nom terem papeizinhos de cores dabondo pra trocar por cartoniznhos, ou, ainda tendo-os, quererem conservá-los ou trocá-los por outras cousas (mesmo ao risco de serem presos ou de terem de largar mais logo umha ainda muito maior quantidade dos seus queridíssimos papeizinhos). Aló apenas havia um desses mendigos que sentam no chao cumha pucha na cachola a lhes agachar os olhos e que segundo os viageiros passam por diante deles pedem-lhes se tenhem qualquer troco, mais metálico ca em papel, que os de papel nom som doados de conseguir, e ainda menos de oferecer, pra lhes dar, compangueiro. Eu dixem-lhe que sim e, mesmo sendo algo novo e afoutado em mim, ousei parar a minha marcha apressada cara nengures, e olhar nos olhos daquele home, tal coma o trocador de Goa fixera nos meus ao começo daquele dia que agora semelhava como que um século atrás. Ao tempo que eu escoava umhas peças metálicas no copo de plástico que o compangueiro alevantara pra mim, iamos contando, ele e mais eu, o seu valor, sem falarmos, simplesmente olhando pra elas, eu coma quem teme que o valor que me levam seja demasiado grande, e ele como quem teme exactamente o contrário. Ai tes, compangueiro, pr’um cafezinho, dixem-lhe eu enxergando na sua olhada castanha; muitas beiçom, compangueiro, cuida bem de ti, dixo ele, enquanto eu seguia a olhar nos seus olhos desinteresseiros e sinceros coma os dum cativo, o cativo que ele era. 

E de todo este troco de palavras, cujo significado é tam preciso como venho de expor aqui, embora o muito tempo passado desde aquele dia poida fazer questionar a sua exactidom, nunca conseguim eu lembrar em que língua ou fala foi conduzido, mesmo que eu queira pensar que foi esta mesma galega que venho de escrever acima em itálico. Mas afinal tanto me tem, estas como quaisquer outras, porque eu tenho pra mim que há apenas duas liguagens que contam entre os homens. Umha é a linguagem dos sons, o das palavras, que por vezes até conseguimos pôr em papel, dumha maneira mais ou menos adequada segundo quem as diz e como as diz, e que nom é mais ca o pretexto pra qualquer outra cousa incógnita ou banal. E a outra é a linguagem que importa de verdade, a única que importa, e que lemos no fondal dos olhos dos homes, quando está do fado que tal maravilhosa cousa façamos, pra vermos nele a reflexom dos olhos próprios, de volta, num dia qualquer de inverno, quanto mais ao longe, na ilha de Alba.






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                                 DIALECTOLOGIA 

Reconstruiçom do esquisito troco de palavras que teve lugar entre um galego e um indiano de Goa à entrada d’umha estaçom de caminhos de ferro da Lancaxaira, na fria e bretemosa ilha d’Alba, co galho da compra dum bilhete de ida e volta pra industriosa cidade de Camchester, no cor do grande condado lancaxairo, e que se produziu inteiramente numha fala incompreensível pr’os moradores destas partes afastadas e nom muito assoalhadas do mundo, a lingoagem galega das longínquas terras quentes do sul. 

Galego (falando pra si): 
... fai um sol de caralho hoje ... bom, imos ver se desta vez me entendem sem ter eu de repetir ... vou-lhes pôr o sotaque d’eiqui, a ver se assim me percebem d’umha puta vez ... ehem ... imos lá ... ehem ... (dirigindo-se cara o primeiro trocador que ve no corredor) hello, can I have a return ticket to Cam-ches-ter, please? ...

Indiano de Goa: 
Dois e quarenta e cinco ...

Galego (falando pra si todo abraiado): 
Ele-falou galego?

Galego (falando já pr’o indiano de Goa): 
Sorry?

Indiano de Goa: 
São dois e quarenta e cinco.

Galego (falando pra si): 
Sim que falou galego, dixo dous e corentacinco! Ele-nom pode ser!

Galego (falando pr’o indiano de Goa): 
Ah, fala gal ... português?

Indiano de Goa
Falo, sim (esculcando nos olhos do galego)

Galego: 
Ah ... e lo’ ... entom é brasileiro ou ... ...

Indiano de Goa (oferecendo a mão em cunca pra recadar o dinheiro polo bilhete e sem deixar de olhar pr’os olhos do galego): 
Indiano, de Goa.

Galego: 
Ah ... muito bem ... aí tem  (dá-lhe um bilhete de cinco livras, recebe o troco, que o indiano de Goa lhe dá sem deixar de fitar nos olhos) ... obrigadinho ... Já está pra chegar ...  Adeus 

Indiano de Goa (já voltado cara o próximo viageiro): 
Adeus, boa viagem.

Galego (correndo polo corredor em diante e falando pra si): 
Manda caralho que quero eu falar o saxon mais aperfeiçoado e vou dar c’um que fala galego. Ele-como faria pra saber que eu era galego ... ?!
Ele-nom diria bem o nome da cidade? Cam-ches-ter, Cam-ches-ter ...





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                                GEOGRAFIAS AO LONGE

Terras quentes do sul donde veu o galego que mercou o bilhete do comboio de ferro de ida e volta pr’a cidade de Camchester, na fria ilha de Alba, a um indiano de Goa, que lhe falou galego:




Terras ainda mais quentes e mais pr’o sul (e ainda pro Leste) donde veu o indiano que vendeu um bilhete de ida e volta do comboio de ferro pr’a cidade de Camchester, na fria ilha de Alba, a um galego, que lhe falou galego:




Terras frias da bretemosa ilha d’Alba, onde vive o albano que pediu um troco a um galego que por aló passava, na fala saxona dos albanos ou seica em galego, num asoalhado dia d’inverno (com as ruas ainda molhadas da choiva da noite):