Saturday 18 March 2017

O DERRADEIRO LUSISTA

Atopárom-no no meio dumha fraga perdida, deitado no chao verdecente, calmamente inerte, velho e engurrado como era. As roupas sujas, ainda molhadas da choiva e humidade da noite passada, e umha bolsa de pano velho ao seu carom. «O que é isto?», perguntárom-se, segundo pegavam nuns estranhos objectos que descobrírom no seu interior. Aqueles objectos, feitos de papel e papelom, eram o que antigamente se chamavam «livros». Assi o explicou um deles, com apenas quatro pulsons neuronais, as mínimas necessárias pra comunicar aquele pensamento por telepatia, o meio mais efetivo e vulgar de comunicaçom que existia nesses finais do século XXI. 

Mui atrás ficaram aqueles tempos de comunicaçom oral e escrita, com aquela miríada de línguas, e dialetos, que muitas persoas elevavam à categoria de entes em si próprios, e que mesmo chegavam a adorar como símbolos de identidade persoal e coletiva. Adoitavam dizer ao respeito, naqueles tempos longes, cousas como «a minha língua é o sangue do meu espírito» ou «a minha pátria é a língua portuguesa». Atribuiam, a certos padrons sónicos daquele primitivo canle oral, o estatuto de entidade própria e viva, falavam mesmo de conflitos entre essas entidades, de interferências, de misigenaçom, de loitas por espaços sociais ... Havia mesmo armadas inteiras de cientistas especiais, auto-chamados «linguistas», que lhes atribuiam determinadas qualidades e propriedades, que definiam o seus limites, as suas variedades, as suas essências e mesmo determinavam quais os seus usos incorretos. E a maioria das populaçons seguiam com atençom e respeito esses ditados. 

Mas tudo aquilo começara a desabar co advento das comunicaçons neuronais diretas e da telepatia. Houvera umha primeira fase nessa mudança radical da maneira em que os seres humanos se comunicavam. Fora primeiro a escrita dessas línguas e dialetos orais a mutar. Hologramas e códigos de leitura óptico-digital simplificada fôrom adaptados aos novos baralhetes que xurdiam pola interrede e nos trebelhos inteligentes de comunicaçom. A ubiquidade da imagem tamém ajudou a dar cabo das letras, e assi a indústria da ortografia foi perdendo os seus privilégios, e assemade novas indústrias, em ligaçom co tom dos tempos, ocupárom o seu lugar. Fora daquela que os lusistas galegos se tornárom umha sociedade de jogos de rol da rede. O lusistas galegos eram umha seita que adorava um certo ente linguístico, por eles imaginado e batizado co nome de «galego-português», e que só existia numha forma escrita arcaica, ortográfica. Umha vez que os novos meios de leitura de pensamentos tornárom a ortografia irrelevante, o lusismo — os lusistas — reunírom-se na interrede. Ali criárom umha sociedade alternativa, a ser acessada nos seus abondosos tempos de lazer, em que os seus mais intensos desejos e arelas se tornavam realidade. Criárom países e sociedades novas, onde eles eram sempre os heróis, criárom um império baseado nessa língua imaginada, e dotárom os seus avatares com sotaques lisboetas ou brasileiros. A eles, pioneiros virtuais, unírom-se logo outros nostálgicos do mesmo abstrato ente linguístico, amiúde antagonistas, por criarem formas alternativas ao mesmo ente, que armavam com ortografias e sotaques diferentes e manifestamente secessionistas. Enquanto isso, fora do seu mundo virtual, todos falavam o mesmo idioma, que era um vernacular galego-espanhol, velho reminiscente do português. Mas esse idioma já perdera qualquer valor identitário, pois aqueles tempos começavam a inçar com identidades individuais e coletivas mais modernas, ou seja, baseadas e vividas exclusivamente na interrede e em atividades e hobbies novos e mais estimulantes.

O golpe de misericórdia ao lusismo, assi como a tódalas ideologias e grémios artelhados em volta do ente imaginado linguístico — e da naçom que o falava — chegou co descobrimento e difusom da telepatia. Relegadas a simples artes marginais e démodés, cantadas ou recitadas, as falas dos humanos deixárom de ser codificadas e usadas como focos identitários coletivos. Muitos inteletuais devérom achar novas formas de parasitismo social, e os jogos de rol baseados nas entidades ortográficas fôrom desparecendo aos poucos, pois as novas geraçons, desconhecedoras da fala e das suas regras e entulhos gramaticais, preferiam jogos doutra natureza, sempre mais visual e aventureira. 

Fora entom que aquele velho home, lusista nos seus tempos mais novos, decidira recriar aquele ente imaginário, aquela forma de comunicaçom arcaica, com oralidade e escrita ortográfica antigas, a que costumavam chamar «galego-português». Deslocara-se pra um dos poucos e remotos lugares em que ainda subsistiam algumhas tribos pre-modernas, aqueles sucessores de religions e sociedades ideais ou prístinas: testemunhas do demo, muçulmanos da volta de Mahomé, budistas da pancada, contempladores do espírito silencioso, labregos do novo mundo ... Numha serra que no tempo dos estados-naçom fora zona fronteiriça, havia umha aldeia de casas de pedra e economia labrega, tal como eram antigamente. Os vizinhos eram gente já velha, e que se recusaram a adotar os meios de comunicaçom contemporâneos, preferindo viver como os seus antergos, falando cos órgaos fonadores, cantando, e mesmo escrevendo em papel, na pedra ou na terra as suas velhas ortografias. Ninguém os incomodava, e eles nom incomodavam ninguém, enquanto a austeridade da vida que levavam se lhes tornara algo normal e mesmo necessário. O derradeiro lusista, incapaz de se adaptar aos novos jogos de rol da interrede, decidira abandonar toda modernidade e viver com aquela tribo os derradeiros anos da sua vida. Com eles aprendeu a falar, por fim, aquela fala que fora imaginada como «língua galego-portuguesa». Corenta anos de interaçom virtual cos colegas lusistas nom lhe deprendera a falá-la, só a escrevê-la ou reproduzi-la em sintetizadores digitais, pois, como muitos criticavam judiciosamente, nengum dos lusistas sabia falar o galego-português. Quadrava que nom precissavam falá-lo, porque o seu choio era escrevê-lo (embora nengum deles tivesse grande talento nisso) e quando tinham de falá-lo empregavam os sintetizadores digitais, ou simplesmente empregavam o meio mais conveniente e moderno da telepatia. Mas aquela adoraçom dumha determinada ortografia, que eles defendiam afincadamente nos seus jogos de rol da interrede, e o uso dela sem qualquer relaçom coa própria fala, acabou por cansá-lo, e foi por isso que ele (assi como todos aqueles que nom eram Altos Cregos do Lusismo) acabou por se desligar daquele jogo de rol e da rede.

Nos seus derradeiros anos de vida, o derradeiro lusista nom ouviu falar outra cousa ca o vernacular arcaico daquelas gentes perdidas na serra perdida, e que era antigamente conhecido como português nortenho. Era um vernacular português mui diferente do lisboeta, por estar ateigado de galeguices daquela bisbarra raiota. Aquilo era o mais parecido que nunca houvera ao galego-português. Ao derradeiro lusista levou vários anos deprender a falar o galego-português, porque aprender a falar fluentemente qualquer língua nom é cousa que se poida faguer com quatro aulas por semana ou leitura de tratados de ortografia, e ainda menos vivendo num lugar em que o vernacular espanhol soa por toda a parte. Mas coa ajuda dos sus velhos livros galegos em papel e das conversas contínuas na fala portuguesa antiga e agalegada daquelas gentes, o «galego-português», na mente e na boca do derradeiro lusista, tornou-se umha realidade, ou seja, um ente nom virtual. Com ele pensava e comunicava oralmente os seus pensamentos aos seus vizinhos, e mesmo por vezes os escrevia, mesmo sem prestar grande atençom às suas estabelecidas regras ortográficas. Foi pena que a pouco de ter atingido esse estado já nom ficava um só vizinho na aldeia, tendo todos morrido de velhice. Chegaram novos povoadores, sim, mas eram dos que só empregavam os meios modernos de comunicaçom e só conheciam a telepatia ou a leitura óptico-digital dos trebelhos. Assi, o derradeiro lusista decidiu partir contra as fragas mais longes e falar o galego-português cos animais e as fróis da serra, mesmo ao preço de nom ser compreendido já por ser ningum, afora ele próprio. 

Nom sabemos quais seriam as suas derradeiras verbas, os seus derradeiros pensamentos em «galego-português», nem o porquê derradeiro da sua decisom de partir, mas temos como testemhunha os seus derradeiros escritos em arcaica ortografia, que deixou num daqueles «objectos» chamados «livros». 

Eles som já irrelevantes, e ninguém se há preocupar co seu sentido ou formas, pois o mundo vai sempre avante, e coma umha serpe vai ceivando as camadas antigas e inservíveis. Seica ele cuidara que, da mesma maneira que os vivos se refugiavam no mundo virtual, pra recriar ou viverem nele as suas arelas mais profundas, os antergos mortos se retiraram nas fragas, e ali era que ele poderia falar com eles o seu amado ente galego-português. Ou talvez simplesmente se cansara das falas humanas, na forma que elas forem, e degoxara viver mais puramente, escoitando o verso das augas dos regatos, as cântigas das folhas das árvores e os rechouchios dos paxaros, os ecos das suas pegadas na relva, o som do ar. Seica fora só isso.






No comments:

Post a Comment